Foto: Divulgação / TSE
Uma nova interpretação dada pelo
TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a um artigo da Lei Geral das Eleições sobre
anonimato nas campanhas tem sido usada para uma série de multas a políticos e,
em alguns casos, até eleitores e outras figuras públicas, por conteúdo
considerado como desinformação, ainda que tenha autoria clara.
A mudança de entendimento da
corte é questionada por advogados da área por ir contra o texto literal da
legislação. Por outro lado, parte deles pondera que a medida é uma tentativa do
tribunal de não se omitir em relação ao tema em um cenário em que projetos para
regulamentar as plataformas digitais emperraram no Congresso.
O artigo 57-D da Lei Geral das
Eleições diz que "é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato
durante a campanha eleitoral, por meio da rede mundial de computadores
--internet, assegurado o direito de resposta".
A sanção prevista em caso de
violação ao dispositivo é de multa de R$ 5.000 a R$ 30 mil.
O TSE foi presidido desde agosto
de 2022 pelo ministro Alexandre de Moraes, que deixará a corte na próxima
segunda-feira (3), quando a ministra Cármen Lúcia irá sucedê-lo no comando do
órgão.
A "reinterpretação" do
dispositivo, conforme palavra usada por Moraes, teve origem em ação movida
contra Nikolas Ferreira (PL-MG) em decorrência de um vídeo publicado em outubro
de 2022 pelo bolsonarista.
Na filmagem, o então deputado
eleito dizia que Lula havia desviado R$ 242,2 bilhões da saúde pública e
reproduzia trecho de declaração em que o petista afirmava o seguinte: "As
pessoas que são analfabetas não são analfabetas por sua responsabilidade. Elas
ficaram analfabetas porque esse país nunca teve um governo que se preocupasse
com a educação".
Em decisão monocrática ainda em
dezembro de 2022, Moraes decidiu impor a Nikolas a multa de R$ 30 mil, pelo que
entendeu serem declarações inverídicas e gravemente descontextualizadas no
vídeo.
O ministro afirmou que os R$
242,2 bilhões citados foram direcionados a outras rubricas do Orçamento, e não
desviados por corrupção, como deu a entender o deputado; e que, na versão
original da frase sobre analfabetismo, Lula citava uma série de medidas de seus
governos para combater o problema.
Ao defender a reinterpretação do
artigo 57-D, Moraes citou na ocasião "o grave contexto de propagação
reiterada de desinformação, com inegável impacto na legitimidade das
eleições" e a missão do TSE "no combate às fake news na propaganda eleitoral".
Para contestar a leitura literal
do artigo, ele argumentou que, "realmente, a partir da leitura do
dispositivo, não se mostra viável depreender que o ilícito se restringe à
hipótese de anonimato".
Ao analisar recurso de Nikolas
em março de 2023, o TSE confirmou o entendimento de Moraes por 6 votos a 1.
Ficou vencido o ministro Raul Araújo, que entendeu estar o vídeo dentro dos
limites da liberdade de expressão e não ser cabível aplicar o artigo contra
anonimato a casos de desinformação.
Desde então, o artigo tem sido
aplicado em uma série de decisões na corte --só em abril, foram ao menos seis--
e também nos tribunais regionais eleitorais.
A pesquisa de jurisprudência do
TSE mostra que bolsonaristas estão entre os mais multados com base no
entendimento no artigo.
O ex-presidente Jair Bolsonaro
(PL), por exemplo, tem multas acumuladas em R$ 100 mil por afirmações que
tratam de associações do PT ao PCC, a imputação ao partido de alegações falsas
sobre sexualização de crianças e o chamado a aposentados a fazerem "prova
de vida direto nas urnas" votando em Bolsonaro.
Seus filhos Flávio e Eduardo,
assim como a correligionária Carla Zambelli, também estão entre os que
receberam mais de uma multa.
Em caso recente, por outro lado,
a sanção foi usada para punir com multa de R$ 5.000 um crítico da senadora
Damares Alves (Republicanos-DF) em sua campanha ao cargo.
Com 149 seguidores à época, o
perfil @brasiliasemdamares reproduziu texto de um blog com os comentários
"é um absurdo" e "brincando com o dinheiro do povo".
O relator do caso no TRE-DF
entendeu que o dono da conta deveria ser multado, uma vez que o conteúdo
reproduzido por ele continha informações inverídicas, como a de que Damares
havia gasto todo o dinheiro do fundo eleitoral para a sua campanha e feito uma
vaquinha virtual.
O cantor Latino também foi
multado em R$ 5.000, pelo TSE, por publicar vídeo que dizia que Lula e o PT
eram favoráveis à implantação de banheiro unissex nas escolas, ao aborto e à
liberação das drogas.
Autor de "Liberdade de
Expressão e Desinformação em Contextos Eleitorais" (ed. Fórum), Elder Maia
Goltzman afirma que a reinterpretação do artigo sobre anonimato pode ter um
efeito de dissuadir agentes a praticarem desinformação, em um contexto no qual
o Congresso não regulamentou as plataformas digitais.
Ele afirma ainda que a mudança
de entendimento não é incomum no tribunal, dada a sua composição rotativa.
Como exemplo, ele cita a decisão
de que o fundo partidário e o tempo de propaganda destinados à candidatura de
mulheres devem ser divididos entre negras e brancas na exata proporção das
candidaturas apresentadas pelos partidos. "A lei não foi expressa nesse
sentido e coube à corte esta interpretação", diz.
A advogada Amanda Cunha, membro
da Abradep (Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político), avalia por
outro lado como problemático o uso do artigo 57-D para coibir desinformação
quando não há anonimato.
Segundo ela, a corte nesse caso
não promoveu uma mudança de interpretação, mas "a criação de um ilícito
que não está na legislação", resultando em arbítrio.
"A Justiça Eleitoral tem
sido muito feliz em relação a desinformação, mas não tem poderes
ilimitados", diz.
Também integrante da Abradep, o
advogado Luiz Eduardo Peccinin avalia que o uso do artigo sobre anonimato para
aplicação de multa foi a forma de o TSE encontrar uma sanção intermediária
entre a mera remoção do conteúdo e a cassação por prática reiterada de
desinformação.
"O melhor caminho era que o
legislador previsse multa, mas, enquanto não houver lei específica, o tribunal
não pode fechar os olhos para o que está acontecendo", afirma.
Por Bahia
Notícias