O presidente do INSS,
Alessandro Stefanutto, afirma que o sumiço de 223,6 mil requerimentos de
benefício na fila de espera, revelado pela Folha em agosto, ocorreu porque
"alguém deixou [os pedidos] numa gaveta". Segundo ele, o problema foi
herdado do governo anterior.
O órgão ainda não concluiu a apuração interna para atestar
se a causa foi um erro de sistema, negligência ou ato intencional. De acordo
com Stefanutto, a prioridade imediata após a detecção da divergência foi
recolocar esses pedidos na fila e dar a eles algum encaminhamento.
A explicação oficial do INSS é que os requerimentos
estavam vinculados a uma unidade desativada dentro do sistema.
Aos olhos do beneficiário, o status do pedido constava
como "em análise", mas não havia tarefa em aberto para que um
servidor do órgão fizesse a devida avaliação. As solicitações seriam todas de
benefício por incapacidade.
"É como se eu tivesse um armário aqui, aí alguém
saiu, a unidade fechou, trancou a porta e os processos estão lá", diz.
"Esses processos não eram enxergados por ninguém. Não
sei se isso aconteceu por acaso, por um erro de sistema, não sei se alguém fez
isso para baixar a fila e falar que tinha baixado. Isso estava escondido, desde
o ano passado."
Uma segunda falha ocorreu em 2023, admite Stefanutto.
Segundo ele, 49 mil pedidos que já haviam passado por perícia médica, foram
encaminhados para ajustes cadastrais -o chamado "pós-perícia"- e
ficaram indevidamente retidos num limbo, sem gerar nenhum tipo de tarefa para
os servidores.
Esses pedidos também foram reintegrados à fila do INSS.
O problema maior veio à tona quando o Ministério da
Previdência lançou o chamado Portal da Transparência Previdenciária com uma
estatística de pedidos em espera no mês de junho 223,6 mil menor do que o
apontado para o mesmo período em outro documento oficial, o Beps (Boletim
Estatístico da Previdência Social).
O atual presidente do INSS afirma que o Portal da
Transparência manteve metodologia já empregada pelo governo anterior. "O
ministro só organizou os números. Mas é o mesmo critério do governo anterior."
Apesar disso, Stefanutto diz não querer politizar o tema.
"Não posso dizer que o número foi colocado por algum tipo de falseamento.
Estamos estudando."
Após a declaração, a Folha comparou números anunciados em
2022 pelo então MTP (Ministério do Trabalho e Previdência) e detectou
divergências.
Em 9 de dezembro do ano passado, MTP e INSS divulgaram à
imprensa e à população um balanço dizendo que a fila acumulava 923 mil
requerimentos administrativos. No Beps, o número era 1,144 milhão (uma
diferença de cerca de 221 mil).
Antes, em 14 de outubro, outro texto dizia
"Transparência: INSS reduz estoque de processos para menos de 1
milhão". O número divulgado, de 976 mil, porém, era menor do que o 1,159
milhão apontado no Beps.
Procurado, o ex-ministro José Carlos Oliveira, que
comandou o INSS a partir de novembro de 2021 e o ministério a partir de março
de 2022, na gestão Jair Bolsonaro (PL), diz não conhecer as diferenças em
questão, mas falaria com sua equipe da época, incluindo o ex-presidente do INSS
Guilherme Serrano (que chefiou o instituto entre abril e dezembro do ano
passado).
Oliveira afirmou ainda que pediria a ele que fizesse
contato com a reportagem para dar explicações. A Folha também procurou Serrano,
que preferiu não fazer comentários.
Oliveira afirma ainda que, em sua época no comando do
órgão, "tinha realmente uma diferença" nas estatísticas, uma vez que
a fila divulgada não considerava processos "em exigência" -quando há
uma pendência que depende do segurado para ser resolvida, como a entrega de
documentos.
"Eu sempre pensei o seguinte: independentemente de
depender do segurado, é uma tarefa, é um processo pendente no INSS, então esses
números tinham de ser abertos. A gente sempre prezou pela transparência",
diz.
Uma vez detectados os problemas, Stefanutto afirma que os
pedidos engavetados ou retidos indevidamente foram reincorporados à fila. Nem
todos já foram analisados pelos servidores do INSS, mas o processo está em
andamento.
Em paralelo, a área técnica está produzindo um relatório
sobre o caso.
"Se a gente verificar, tecnicamente, que [o sumiço]
foi um erro sistêmico, corrige. Se a gente verificar que tem uma matrícula
vinculada, que alguém deixou lá sem cumprir uma norma, vai para a corregedoria,
e a corregedoria aqui é duríssima. É um caso muito grave. Mesmo se foi
negligência, é como atropelar alguém porque não prestou atenção no farol
fechado. 'Ah, foi sem querer'. São 223 mil pessoas que ficaram sem benefício,
ou pelo menos tinham chance de ter um benefício", diz o atual presidente
do INSS.
No caso dos 49 mil retidos em 2023, ele afirma que os
indícios apontam a ocorrência de um "erro sistêmico".
Na tentativa de resolver as pendências, Stefanutto tem
sido cobrado pelo ministro Carlos Lupi (Previdência Social), porque o estoque
de requerimentos se mantém na casa de 1,6 milhão, contrariando a expectativa do
governo de reduzir a quantidade de pessoas em espera.
A partir de julho, a metodologia do Beps foi revista para
convergir com os números do INSS.
O dado também passou a retratar não só os requerimentos
administrativos, mas também os que dependem da perícia médica. A fila deu um
salto, alcançando 1,8 milhão em julho. Em setembro, caiu a 1,6 milhão.
A Folha ouviu reservadamente técnicos que já fizeram parte
da burocracia do INSS e do ministério.
Para esses interlocutores, a hipótese de uma falha no
sistema pareceu estranha, embora não impossível. Eles acham difícil ter havido
alguma intenção de maquiar os dados, diante dos elevados riscos envolvidos em
uma ação como essa.
Nos bastidores, os técnicos afirmam que o Beps usa a base
de um sistema mais antigo. Por outro lado, o sistema do INSS capta as tarefas
em aberto --e uma das explicações oficiais do órgão é a de que havia
requerimentos sem tarefa vinculada.
As discrepâncias entre sistemas sempre foram consideradas
um desafio para a gestão eficaz dos benefícios previdenciários, que hoje passam
dos R$ 800 bilhões ao ano e representam a maior despesa do Orçamento.